Na zona rural de Cuiabá, um Brasil que poucos veem pulsa com força e resiliência. É ali, entre cercas de arame e pastos cansados, que pequenos produtores lutam para manter viva a pecuária leiteira — uma atividade essencial, mas cada vez mais ameaçada pelo abandono estrutural, pela falta de jovens no campo e pela informalidade que domina a cadeia.
Um levantamento recente, feito pela Empresa Mato-Grossense de Pesquisa, Assistência e Extensão Rural (Empaer), em mais da metade das comunidades rurais do município, trouxe à tona um retrato preocupante. 7 em cada 10 produtores têm mais de 55 anos. Muitos já passaram dos 65. A juventude, com raras exceções, não está no campo. E quando está, pensa em sair. “Eles não querem ficar porque não veem futuro na atividade”, resume Antonio Rômulo Fava – Zootecnista e Extencionista Rural da Empaer, um dos responsáveis pelo Diagnóstico da Cadeia Produtiva da Pecuária de Leite em Cuiabá. Uma reunião que, mais do que um encontro formal, virou um ponto de inflexão para o setor.

União e força para o setor produtivo
O evento realizado na manhã desta sexta-feira(16), no Auditório Gilberto Porcel, no Parque de Exposições da capital mato-grossense, proposta pela Prefeitura de Cuiabá por meio da Secretaria de Agricultura e Trabalho reuniu representantes de entidades como SENAR, Empaer, Sindicato Rural de Cuiabá e associações de produtores – MT Leite. O objetivo? Entender os problemas com profundidade — e, principalmente, traçar soluções viáveis. A conversa foi franca. E, apesar do diagnóstico duro, o clima era de engajamento.
Nesse sentido, o secretário adjunto de Agricultura de Cuiabá, Vicente Falcão, reforça a importância de um trabalho cooperativo entre as lideranças do setor, para que, juntos, possam elaborar um plano estratégico eficiente e aplicável, pautado na realidade do produtor rural.

“Nossa intenção é de, em primeira instância, identificar através de um diagnótico claro e verdadeiro, qual a realidade enfrentada pelo produtor e a partir dessas informações construiir políticas públicas eficientes, que de fato consigam estimular a atividade leiteira na zona rural de Cuiabá. Temos um potencial enorme para elevarmos esse patamar e criarmos um ambiente favorável aos incentivos do setor. E para isso o ponto de partida é identificar por onde começar.“, avalia Vicente Falcão.
Uma realidade que precisa mudar
A realidade técnica das propriedades é difícil de ignorar: 92% não têm trator; 93% ainda ordenham manualmente. Testes básicos de sanidade, como o de mastite, simplesmente não são feitos. E o rebanho, em sua maioria, é controlado apenas “no olho”. Os pastos estão degradados em 74% das áreas e o manejo alimentar sofre com a seca e a escassez de volumosos. Mas há um ponto que atravessa todas essas dificuldades: falta organização.

“Sem saber quanto custa produzir, o produtor não consegue melhorar. Ele precisa aprender a fazer conta, botar no papel, mesmo que de forma simples”, aponta Fava. E é aí que surgem os programas de assistência técnica e o apoio das entidades ligadas a cadeia produtiva, para orientar os produtores às melhores práticas da atividade.
Entre os dados apresentados, outro ponto de atenção foi que a maioria das propriedades enfrenta graves deficiências em equipamentos, pastagens degradadas e falta de volumosos para suplementação animal. A ausência de regularização fundiária e ambiental bloqueia o acesso ao crédito, enquanto 71% dos produtores dependem de renda externa para manter suas atividades. Sem laticínios ativos ou cooperativas na região, o setor carece de estrutura de apoio. Esses dados evidenciam um sistema produtivo fragilizado, que demanda ações coordenadas em assistência técnica, incentivo à sucessão familiar e organização coletiva para garantir sua sustentabilidade.
O potencial do Vale do Rio Cuiabá
Apesar de Cuiabá de não ser uma grande região produtora de leite em relação a outras regiões do estado, é na capital que se enontram a maioria dos consumidores e alta demanda por produtos derivados, como o queijo. Pensando nisso, o presidente da Associação dos Produtores de Leite de Mato Grosso (MT Leite), Dollor Vilela acredita que essa reunião pode criar um movimento importante na organização, no trabalho em conjunto das entidades e principalmente na conscientização do produtor rural.
“As entidades se reuniram, e acredito que algo bom vai sair disso. O produtor precisa fazer conta, sentar e colocar no papel suas despesas e receitas, entender o que pode investir ou não. A principal ação é fazer gestão da propriedade — não tem outro caminho. As informações estão disponíveis em várias instituições como Senar, Sebrae, prefeituras, sindicatos e Empaer. O jovem também precisa ser estimulado a conhecer e gostar da atividade; se ele não gostar, não vai permanecer. É fundamental participar de espaços como o Conseleite, onde se discute o custo real da produção. A cadeia do leite parou no tempo, diferente da soja e do gado de corte, que evoluíram porque têm associações fortes. Nós precisamos reagir.“, ponderou Dollor.

E completando esse pensamento “o produtor precisa de querer“, disse Bruno Fernandes de Faria, Gerente de Assistência Técnica e Gerencial (ATeG) do Senar-MT. Ele menciona a falta de confiança por parte dos produtores e que acabam desistindo de receber apoio por não querer compartilhar dados básicos por exemplo. “Aí não adianta. Porque a gente tem cerca de 15% de produtores que desistem da ATeG. E por que ele desiste? Porque na hora que você começa a trabalhar com ele lá, muitos não passam os dados com medo da Receita Federal e a gente fala para eles, esses dados são básicos e não ninguém vai ter acesso assim para outros fins.“, comenta Bruno.
A importância da Comunicação
A reunião também foi espaço para compartilhar exemplos inspiradores. Em uma matéria produzida pelo Agronews em Carlinda, uma família trocou o gado cruzado por Girolando. Com apoio técnico, a produção subiu e, mais do que isso, o filho que estava na cidade voltou para ajudar na propriedade. “É disso que a gente precisa. Mostrar que dá certo, que é possível viver bem do leite”, comenta o jornalista Vicente Delgado.
Ainda assim, o desafio da comunicação é imenso. Muitos produtores têm baixa escolaridade e desconfiam de novidades. Falar a língua do campo — com simplicidade, clareza e empatia — é essencial para vencer a resistência. “O produtor só muda se entender o porquê e se enxergar no exemplo do outro”, resumiu Jefferson Silva, mobilizador de cursos do Sindicato Rural de Cuiabá, ao compartilhar alguns cases de sucesso vivenciados no campo, onde a união e organização dos produtores mudaram a realidade da comunidade rural.
Perspectivas e estratégias para o setor produtivo
Outro tema sensível foi o cooperativismo. Mais da metade dos produtores não participa de nenhuma associação. Isso dificulta o acesso a insumos baratos, crédito coletivo e até venda com preço melhor. Mas há saídas. Em Salto do Céu, por exemplo, a prefeitura comprou tratores e aluga para os associados por hora. Já em Serra das Laranjeiras, um grupo organizado conseguiu reduzir drasticamente os custos com compras em conjunto.
O encontro não trouxe soluções mágicas — e ninguém esperava isso. Mas deixou claro que o problema não é falta de recurso ou de ideia. É falta de integração, de continuidade nas ações públicas, e, muitas vezes, de esperança. “A gente precisa acreditar que pode dar certo. E começar a agir em conjunto”, disse, com olhos firmes, o secretário adjunto de agricultura Vicente Falcão.
A pecuária leiteira em Cuiabá — e no Brasil — está em uma encruzilhada. Mas se depender da disposição vista naquela sala, onde técnicos e produtores falaram a mesma língua pela primeira vez em muito tempo, o caminho para dias melhores já começou a ser trilhado.
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